Segunda-feira, 5 de Novembro de 2018
Tens de esperar, o pé para o alto, o corpo dorido, a traição absoluta agudizada pelo frio e pela chuva, como encontrar algum conforto num cenáro assim?, a pergunta fica a pairar e o relógio rasteja com a lentidão os caracóis mais preguiçosos. É preciso chegar às cinco e meia e não posso envelhecer mil anos até lá. Curioso como o tempo nos massacra. Na janela, a chuva rasga o céu como se fosse estática da televisão, fecho os olhos, mudo de canal.
Domingo, 4 de Novembro de 2018
Então, fazes o tal esforço, um esforço extra, o que seria se dissesses tudo o que pensas, quem sobreviveria a tal chorrilho de disparates, nem tu, por saberes que se disseres em voz alta o que sentes ou julgas pensar terás o momento de arrependimento máximo no exacto segundo em que as palavrinhas atingirem o ar dos outros. O drama são os outros, pois, cada pessoa é uma humanidade, é repetir a ideia e repetir até que fique, e viver a dor devagarinho e em silêncio. Estás muito crescida, logo podes calar. No exercício de não dizer o que sentes ou te apetece pensar, gritas dentro de ti, tens gestos precipitados que revelam essa impaciência ou zanga, mas não pode ser zanga, isso seria andar para trás, quando na verdade só queres mesmo é ficar num outro tempo, um tempo que não existe, talvez já tenha existido, talvez esteja por existir. As questões existencialistas. Concentras as tuas ideias nos seis homens justos que sustêm o mundo, não és judia, mas acreditas nisto, e por que não?, acreditas e até pensas ver, em homens ou mulheres, essas personagens que nos salvam de terror do fim. Seis pessoas que permitem que a terra gire, que o sol queime, que o vento assobie e outras banalidades deste teor, e ainda a ideia de que a amanhã é que é. Não é. Amanhã não é. Então, fazes o tal esforço, um esforço extra para deixar estar quem anda à tua roda, para te deixares estar. Poderia ser uma dança chinesa, mas é só um esforço extra.
Quarta-feira, 31 de Outubro de 2018
Roubas ao Chico Buarque o verso, é sempre bom ser do Chico, afinal quem é que escreve assim, palavras que são dele e são nossas mesmo antes de o sabermos? Por isso, em construção, no dia de samhain, apropriado para quem começa uma face negra da vida, cá estás a ver se a chuva te lava as ideias, certa de que nem a chuva te purifica, certa de que agora é tarde. Tentas retomar o assunto e entender como chegaste aqui, afinal como é que se chega aqui? Defines aqui. Já tinhas construído o vazio, depois ignorado janelas abertas e ainda forças estranhas dentro de pessoas igualmente estranhas, por isso terá de existir uma rota que foi a que tomaste, que te trouxe aqui. Repetes: o passado não é a tua identidade. Repetes: a culpa é católica, tu és cristã. Repetes: não entendes nada. E ficas assim, a não entender nada. São duas e meia da tarde, o telefone toca e não há resposta. Cimento para o que está para trás; lágrimas de agora. E depois a chuva, outra vez a chuva, a ver se resulta.
Terça-feira, 30 de Outubro de 2018
Tens toda a razão, as fotografias são enganadoras, não prestam serviço à memória, apenas a uma ideia, construção feliz do que quisemos ser naquele dia, no segundo específico em que sorrimos ou contivemos o sorriso. Neste caso, a fotografia mostra uma família ou, no teu caso, uma ideia que tinhas de família. Parece que foi há cem anos, talvez tenha sido há mais. Dentro de ti as ideias esgotaram-se.
Segunda-feira, 29 de Outubro de 2018
Há o momento da dor, depois a tentativa estranha, brutal, de querer voltar à superfície, mesmo que a superfície seja um tumulto, não temes a tempestade, tens é de sobreviver, por isso precisas ainda de dar outro passo, algo idiota, mas que é teu, algo que pertence apenas à tua essência e pouco mais: fazes voto de silêncio. Não é por entenderes que tudo passa, que o tempo corre atrás do tempo e que o hoje foi o futuro de ontem e cenas dessas que se lêem em quadros animados nas redes sociais. Não. Fazes voto de silêncio por tudo te ser incompreensível, as pequenas e as grandes coisas da tua vida. E não, não é o Brasil ou a Hungria, embora também seja, porque és esse tipo de pessoa, atenta ao mundo e aos outros, tens preocupações, tens medo de militares e de fascistas e ainda de quem se abstém, mas não é nada disso, é mais grave por te pertencer em exclusivo, é uma dor tua, que está dentro, ferve no sangue, maltrata as vísceras e, de repente, tu és toda a humanidade na dor. Apenas na dor. Sabes, por seres razoável, que há mais do que a dor, mas isso agora importa pouco, estás focada no que sentes e o que sentes não tem qualquer razoabilidade. O silêncio é uma máquina de consumo acelerado para o pensamento circular, viciante, viciado, tu não pertences aqui, não és daqui. Queres ir embora, não saberias dizer para onde, mas é o que queres, ir, ir, ir embora. E o silêncio dá-te essa vertigem do querer ir embora para lugar nenhum em especial e depois dá-te a voz interior que troça de ti, que te chama estúpida e outras coisas. Até a dor te dá trabalho. Esticas o corpo, tentas controlar a dor de cabeça que se aproxima, pedes-te silêncio. Não há hipótese, o teu silêncio é holocaústico, é terrível. Depois repetes, não pode ser assim, nada é holocáustico, nada que se passe contigo, a tua dor não vale nada, a tua dor possui um valor negativo, quase que não se vê. Por tudo isto, voltas a sair à rua, deixas a dor na gaveta, cais na real, vais. Porque importa ir. Mesmo sem saber para onde, mas vais, vais por aí e isolas a tua dorzinha sem importância e o teu silêncio é cortado por bons dias e se faz favor, obrigada, sim, não. A eficácia da vida a fazer-se sentir e a tua cabeça como um tambor da máquina de lavar. Este é o teu retrato patético. Tu sabes, foste tu quem o escreveu.
Terça-feira, 4 de Julho de 2017
Esquerda, direita, volver. Ou porque é tão difícil abrir a discussão pública a novas pessoas, novas ideias, diferentes formas de pensar.
Dividir o mundo entre a esquerda e a direita é a forma mais cómoda de se viver, a mais preguiçosa e também a menos interessante. Mas é assim que vivemos. Na dicotomia que faz com que tudo tenha esta divisão categórica. Olhamos para os intervenientes em qualquer programa de televisão ou de rádio e lá estão os senhores mais assim, os senhores mais assado (escrevo senhores porque, objectivamente, as senhoras não aparecem com tanta frequência). O que muda em termos de pensamento? Nada. Existe uma agenda e um pensamento condicionado, logo é bastante previsível o que vai ser dito, ou dado a ouvir para que o público em geral possa processar e pensar.
Olhar para o mundo através deste binóculo bipolar parece-me redutor. Dirão que existem várias esquerdas e outras tantas direitas, clivagens, diferenças, actualizações, que existe um centro e os liberais e talvez, porque não?, neo liberais, e tal. Pois seja. Nasci antes da revolução, poucos anos antes, sou, por isso, também produto das conquistas de Abril. Cresci em democracia e, passados mais de 40 anos, pasmo com realidades que limitam a possibilidade de se pensar o mundo de uma forma que não seja partidarizada. E estou um pouco cansada de mais do mesmo, que é como quem diz dos comentários dos agentes informadores mais assim, ou mais assado.
Temos poucos académicos a escrever nos jornais, a falar na televisão. Temos uma mão cheia de politólogos, mas deixámos de ter historiadores, sociólogos, filósofos em contacto com o grande público. O que temos? Mais do mesmo. Os senhores do costume. Há décadas.
Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente que fez campanha sem outdoors, manifestações e outras acções típicas de uma campanha presidencial, esteve anos e anos a entrar pela casa das pessoas através da televisão. O poder que tem a pequena caixa que mudou o mundo é real e contribui para muito. Não sei se, em Portugal, nesta altura do campeonato, contribui para se pensar o país, o mundo, as questões que afectam as pessoas. O que importa é equilibrar as intervenções entre os agentes de esquerda e os da direita.
Nos jornais, durante muito tempo, os escritores – que pensam o estado do mundo e são uma forma de consciência do seu tempo – escreviam crónicas, eram chamados a apresentar ideias. Hoje, são raros os escritores que se envolvem nas matérias sociais. Não por não quererem, simplesmente por não terem esse espaço. Tudo o que envolve a sociedade é político e, portanto, é evidente que tudo se passa à volta da esquerda e da direita? Sim, tudo o que envolve a polis é político, todos nós temos gestos e discursos que formam uma ideia política, mas não precisa de estar engajada numa agenda de partido que, para tornar as coisas ainda mais pobres, resulta em “picar” os potenciais adversário e outras variantes pouco dignificantes.
Disseram-me, há uns meses, que não se pode deixar de ir buscar para intervir nas televisões, rádios e jornais pessoas cujo reconhecimento é imediato. Todas elas eram desconhecidas numa determinada fase da vida, certo? Certo. Portanto, podemos apostar em pessoas cujo discurso é diferente e que ninguém conhece. Ah, as audiências sofrem com isso, com o facto de ninguém saber quem é o académico que vem explicar coisas importantes, digamos, sobre o Islão. A solução é colocar alguém cujo rosto se multiplica em vários cantos da comunicação social, tornando-o um agente de comunicação. E, mesmo que não saiba nada sobre o Islão – que perspectiva de direita, que perspectiva de esquerda, pode existir nesta matéria não sei dizer, mas que importa muito que se saiba mais sobre o Islão não tenho a menor dúvida -, pois alguma coisa se arranjará para pontificar e fazer o contraponto, ou seja, o descascar no vizinho do lado, à esquerda, ou à direita. Do outro lado do ecrã, alguém irá dizer: este tipo é de direita/esquerda.
Perde-se muito quando se divide a realidade apenas desta forma e, acima de tudo, perde-se a possibilidade de abrir horizontes, de aprender, de formular ou reformular pensamento. E, caramba, precisamos tanto de pessoas que pensem bem, diferente, que nos empurrem para lugares melhores. Não dará audiências, mas talvez contribuísse para dar a volta ao estado do país.
Terça-feira, 23 de Maio de 2017
Temos medo. Podemos dizer que não temos, podemos tentar racionalizar, mas é um facto que o século XXI é o século do medo. Pelo menos até agora. Pode ser que mude, porém não vejo sinais de qualquer mudança, sinto apenas a escalada do medo. Aqueles pais, e Manchester, à espera de entender se o filho ou filha morreram é uma imagem que irá permanecer comigo durante muito tempo. Existem imagens hediondas que nos atingem todos os dias, mas o que se passou em Manchester não é um atentado como os outros. O público que assiste aos concertos da artista norte-americana Ariana Grande é jovem, muito jovem. A artista tem um concerto agendado para o Meo Arena e a pergunta que faço é: quantos pais vão repensar essa ida nocturna dos filhos a um concerto? E quantos perguntarão: um dia destes será em Lisboa, certo?
O medo é paralisante e será com isso que muitos movimentos terroristas contam. Não se sabe se o bombista suicida que se fez explodir em Manchester - matando (até ao momento) os 22 e ferindo 59 pessoas - era de algum grupo terrorista. O ataque não foi reivindicado. Uma coisa é certa, conseguiu entrar numa arena com capacidade para milhares de pessoas levando uma bomba que se supõe caseira. Não se sabe quem era, de onde vinha, o que fazia, em que acreditava.
Adonis, o poeta sírio tantas vezes indicado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura, escreve no livro “Violência e Islão” que não é possível o Ocidente e o Islão chegarem a um entendimento enquanto os estados árabes não forem laicos. Afirma que a religião como forma organizadora da sociedade implica, no caso do Islão, violência por ser uma religião criada na violência. Nunca quis acreditar nesta versão, por ser demasiado redutora, por reflectir a vida do poeta, que admiro, mas que está condicionado pela sua experiência. Numa coisa, contudo, está absolutamente certo: o islamismo é a religião que mais cresce, é o que mostram os últimos estudos, e o Ocidente sente-se ameaçado pelo invisível. Os terroristas que se dizem islâmicos não têm uma agenda lógica, atingem onde menos se espera. Nada pior do que não conseguirmos prever. O mundo que temos para os nossos filhos, os nossos netos, não promete nada que seja fácil e não garante qualquer segurança. Sim, repito, temos medo. E temos razões para ter medo.
O medo rouba-nos a liberdade, promove a desconfiança, remete-nos para o que consideramos seguro. O conhecimento e a vida não se fazem sem riscos e essa é a maior vitória do terrorismo que, tantas vezes, diz ofender-se com o estilo de vida ocidental. Sem liberdade não conseguiremos evoluir como sociedade e os retrocessos ao nível dos valores serão inevitáveis, os direitos serão condicionados. Não é assim que queremos viver, bem sei. Seria bom promover o diálogo, mas quem é que quer falar com terroristas que matam crianças? Manchester é assustador por ser no nosso contexto, dentro do padrão normal do nosso comportamento. Outras crianças morrem. Todos os dias, na Síria por exemplo, a morte é o mais comum. Qual é a diferença? O que acontece num país tão distinto da nossa realidade é algo que nos comove pontualmente. Talvez por isso as nossas crianças sejam mais importantes que as crianças dos outros. Nada podia ser mais triste.
Sábado, 25 de Março de 2017
Desenhar é uma forma de escrever. Aprendi isto muito cedo. No estirador do meu tio-avô cresciam formas estranhas, riscos que afinal não eram rasuras, misturas de cores e criaturas disformes, embora encantadoras. Encontrei, mais tarde, vários artistas cuja voz fui reconhecendo. O desenho tem o poder de nos levar para onde quisermos e, se tivermos imaginação, a história que se conta pode não ser a mesma que estava, no início, na cabeça do artista.
Segunda-feira, 9 de Janeiro de 2017
O mundo tornou-se uma caixa minúscula, apenas um quadrado do lado direito do ecrã do computador e a tua imagem, por vezes desfocada, por vezes distinta, um sorriso aberto. A tua mão a passar na cara, a disfarçar as lágrimas, como se eu não soubesse. Não há distância que me impeça de te conhecer, sabes?
Sei que mordes o lábio quando estás nervosa. Se tens algo para contar quando falas mais baixo e devagar. Gostas de fazer perguntas concretas. Odeias demasiados adjectivos. És apaixonada por tudo o que é tecnologia, mas tens a maior colecção de poesia que conheço. Se te perguntarem de onde és, encolhes os ombros. Para ti o mundo tornou-se pequeno muito cedo. Começou numa viagem de comboio depois do liceu, depois um curso no estrangeiro, um estágio num outro continente e, por fim, uma pós-graduação na terra natal. Se não fosse a pós-graduação talvez nunca nos tivéssemos cruzado e seríamos duas metades de laranja desencontradas. Seria um desperdício, não achas? Vais gozar e dizer que desperdício é um pano que se tem no carro para limpar a vareta do óleo.
O fuso horário ou o facto de os hábitos culturais aqui parecerem ser diferentes não te ofuscam, não te tiram importância. A minha vida ainda é feita em função de ti. As tuas memórias estão dentro do computador, nas fotografias, na pasta que tenho no telemóvel com mais de quinhentas mensagens escritas. Sabes que podemos escrever a nossa história de amor só com aquelas mensagens? É verdade, não estou a exagerar.
O amor por escrito não vale tanto, dizias tu no início, depois não resistias e os meus dias passaram a ser invadidos por curtas mensagens, umas mais subtis que outras, alguns enigmas, umas tantas surpresas. Eu comecei por me queixar da vertigem do mundo, desta coisa de estarmos sempre ligados – não no que nos diz respeito – mas aos outros, aos que invadem a nossa vida: sinais sonoros de avisos de mensagem. Chats e imagens em computadores muito pequenas que cujo objectivo é combater a solidão, videos idiotas do youtube, gosto e não gosto no facebook. Tu nunca quiseste saber. Estar ligada ao mundo é a tua maneira de estar. Percebi isso depressa.
Aqui, apesar de tudo, sinto-me sozinho só às vezes. Talvez não tenha sido a melhor opção. Sei que este emprego é importante, até em termos de um potencial futuro conjugado a dois. Não deixo de ter dúvidas. É sempre assim. Fico preso às imagens da televisão e penso nos gestos políticos da Terra e na forma como te posso perder. Um tsunami, um sismo, um furação. Quando era miúdo não ouvia estas palavras. Bom, quando era miúdo nunca pensei apaixonar-me por alguém que vive a pensar em tudo o que está debaixo de água. Tu dizes que nasceste para estar em estado líquido e estudas biologia marítima como se fosse uma paixão. Desculpa, é uma paixão. Trocas informações com colegas do mundo inteiro, até tens uma amiga que se chama Suzuki e que vive no Japão. O teu desespero com o desastre de há uns meses mobilizou uma série de gente e, no fim, Suzuki apareceu sorridente, triste, mas sorridente. Explicou todas as questões técnicas, as placas tectónicas e a força do mar, ondas de dez metros. Tu ouviste tudo e gravaste. Mandaste o ficheiro e vi a tua amiga, por vezes com a imagem a falhar, a explicar como se estivesse a dar uma aula ou a contar algo de trivial. Um rosto desconhecido num inglês sofrível. Mais uma pessoa com quem não me cruzaria se não fosses tu.
Sempre admirei essa tua faceta de entender o mar como algo comum, uma espécie de amarra que nos separa e junta ao mesmo tempo. Pode parecer paradoxal, mas não é tanto assim. Os oceanos são uma forma de vida única e trazem e levam o melhor e o pior. Tu não tens medo. Eu tenho. Confesso-te que sou apenas um professor, aliás um leitor se formos sinceros, contratado para divulgar a cultura portuguesa, a língua de Pessoa e de Camões. Como é que alguém como eu começa uma relação com uma pessoa que sabe tudo sobre as baleias azuis? Agora sei que as baleias azuis têm um coração do tamanho de um carro. Foste tu quem mo ensinaste. E eu ensinei-te o quê? Que temos as fronteiras mais antigas da Europa, que o mar como destino e trajecto para um mundo de Descobertas era uma inevitabilidade se queríamos sobreviver. Coisas, se quiseres, banais.
Na semana passada, além dos emails, dos chats com imagem e até das sms, tive a maior surpresa de todas: enviaste uma caixa, devidamente acondicionada com papel de bolhas de plástico e, lá dentro, um frasco com areia da praia. Uma praia onde foste para fazer pesquisa. Com o pequeno frasco estava um cartão que dizia: “Em terra ou no mar estou sempre aí ao teu lado”. E eu senti-te, aqui mesmo. Toquei no teu rosto, a tua imagem parada no ecrã do meu telemóvel antes de marcar o número da nossa casa.
Segunda-feira, 2 de Janeiro de 2017
A meio da tarde, sem alarido, a anja sentou-se na cadeira de plástico cor-de-rosa. Junto à mesinha cromada onde está o cinzeiro. Acendeu um cigarro e disse:
Selecionar é viver. Os jogos de poder e os interesses são o tabuleiro adequado para alguns adultos. Ficam de tal forma embrulhados nas estratégias complexas que deixam de reconhecer o resto. A única coisa que importa é a reciprocidade.
A mulher, sentada noutra cadeira de plástico, fumando o cigarro para o céu que protege o Saldanha, avenida movimentada e com um barulho específico que ela julga entender de forma adequada, encarou a anja enquanto travava o fumo.
Concordo consigo. Inteiramente. Mas como já não posso mais, quando acabar o cigarro vou atirar-me deste nono andar. E acaba-se assim a minha reciprocidade com o mundo. Deduzo que não seja possível salvar-me dos meus fantasmas. Por isso, se não for pedir muito, deixe-me estar, estou muito bem e não preciso de explicações.
A anja sorriu, afastou um pouco de cinza que esvoaçara a conspurcar a brancura das suas asas e disse
Não estou aqui para a impedir, nada disso. Estou aqui para a acompanhar. Não quero que caía no buraco das obras do metro. Negociei com o vento um sítio perfeito.
Qual? Que sítio?
Está pronta?
A mulher deu a mão à anja, sentindo-se tranquila. Colocou-se de pé na cadeira de plástico, subiu o parapeito de cimento e atirou-se.
Nunca mais se soube nada dela.
O trânsito no Saldanha continuou caótico.
Sexta-feira, 25 de Novembro de 2016
Um sorriso enorme. É sexta feira, a mulher disse em voz alta para se convencer que o dia está certo, que não houve um truque feio do tempo. Só isso. Sexta-feira.
Quinta-feira, 24 de Novembro de 2016
A felicidade é um livro, é um poema, é respirar fundo e conseguir voltar atrás, não por não ter entendido, mas para entender duplamente e essa satisfação ser um consolo. Isto é um livro.
Quarta-feira, 23 de Novembro de 2016
O corpo encolheu-se. Dizem que é o Inverno, mas a mulher ignorou essa fatalidade.
Encolheu-se como um animal e ficou à espera. Faltam poucos dias para ir para o sol.
Terça-feira, 22 de Novembro de 2016
Das três coisas positivas que podia descortinar sem grande esforço, assim, naquele estado de dormência face ao mundo, a mulher não encontrou motivo real para se mexer e, por isso, deixou-se ficar a ver o mundo cheio de coisas, um mundo que da janela só tinha três ideias quase felizes.
Segunda-feira, 21 de Novembro de 2016
Olhe, está a ver aquilo, olhe bem, é uma coisa incrível. É proibido sacudir tapetes na janela. Dá direito a uma coisa, claro que a senhora sabe tão bem quanto eu que as coimas só se aplicam se existir fiscalização e quem é que anda a ver isto dos tapetes? A mulher encarou a janela onde uma cabeça minúscula recolhia já um tapete devidamente sacudido mas cheio de ácaros. Encolheu os ombros e decidiu que o melhor é não ter tapetes ou estar em casa ao meio dia para fazer limpezas. O senhor continuou a abanar a cabeça e atacou outra pessoa dizendo: Olhe, está a ver aquilo, olhe bem...