Terça-feira, 4 de Agosto de 2015

Fictiongram, mais capítulos

onde desgosto é uma palavra
 

De todas as memórias que tem, Carmen aprendeu a desconfiar da veracidade dos pormenores. A sua cabeça mente-lhe, ela deixa que o faça. Tem noção de que pode aligeirar, embelezar ou o contrário. A memória deixou de ser fiável depois do esgotamento. Faz humor. Não se trata de um esgotamento, mas de um desgostamento, uma palavra que tem origem no desgosto. Aponta a nova palavra. Para não se esquecer. Consegue esquecer-se de quase tudo. Talvez o mais difícil seja esquecer o homem que, sendo seu, é agora de outra.


 

onde o dia 17 se repete

 

O mesmo que lhe disse que não lhe podia oferecer um futuro. Como se o futuro viesse numa caixa. Com laço e fita, embrulhado num papel de seda. Carmen ouviu-o com a maior tranquilidade. O coração numa guerra nunca vivida. E ela, calada, a olhá-lo, fixamente, sem esperar mais do que a dor de saber que o saco e a mala eram o abandono. Seis anos. Passaram-se seis anos. Di-lo para dentro, como uma lengalenga infantil que se permite a cada dia dezassete, o dia em que ele se foi embora.

 

onde todos os defeitos dela são como um menu de um restaurante

 

Ainda o vê, o corpo dele a baloiçar, hesitante, à espera do ruído da voz dela, da avalanche das lágrimas reveladoras da intensidade de tudo. Ele a acusá-la de ser, todos os dias, demasiado. Carmen, ela. Demasiado tudo, dramática, obsessiva, estranha, compulsiva, nervosa, frenética. E o corpo dele, na despedida, mostrava como a temia, o embate que sabia ser capaz, a guerra que só ela podia provocar. Foi aquele gesto do corpo dele, um baloiçar no pé esquerdo, as mãos a esfregarem as calças, nervosas, suadas, brancas, esguias, despidas das mãos delas, o olhar cansado e as palavras esgotadas. Tudo isso a travou. Carmen não seria capaz de se transformar num furação. O medo dele fez-lhe medo.

 

onde o medo passou a enjoo

 

Recuou. Ouviu em silêncio – ela que não sabe escutar, quantas vezes lho disse? – sem desviar o olhar, sentindo que o coração podia desfalecer a qualquer segundo, de tanto bater, sincopado contra a sua pele. Sentiu o cheiro do desgosto, o suor a descer junto ao peito, a crescer nas axilas. Teve um ligeiro enjoo, uma tontura. O cheiro que se apoderava do seu corpo era violento, era a morte que chegava. Carmen pensou nisso assim. Não teve a capacidade de dizer nada. Ouviu:

"Ninguém merece viver assim, sabes? Ninguém."

 

onde ser bom na cama não chega
 

Assim? O que ela provocava, o que ela dizia, o que ela fazia. O “assim” condensava tudo isso. Ela afundava-o no pior, tirava-lhe o chão, o ar, a possibilidade de rir. Dava-lhe prazer. Apenas isso. E ele disse:

"Somos só bons na cama. Só somos bons…"

publicado por Patrícia Reis às 19:09
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1 comentário:
De pelosvistosjassabe a 4 de Outubro de 2015 às 04:10
espero que esta história toda que tem vindo a escrever (e n falo destes excertos do q parece o melhor livro de sempre mas também daqueles textinhos sempre acompanhados de uma imagem) e que eu acompanhei do expresso.sapo para aqui, tenha sido vivenciada por outro alguém noutro lado. não quero q a minha história seja inventada com tanta familiaridade e veracidade por quem não conheço


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