A traição do corpo começa quando a cabeça deixa.
E a cabeça deixa sempre que o corpo traí.
Parece confuso ou paradoxal, mas é apenas assim.
Não é só a humidade ou o frio. Se fosse o caso, os dias melhores seriam dourados.
Não. Tudo começa na cabeça e depois está nos ossos e custa a subir as escadas, a guiar, a dormir. A seguir há qualquer coisa que acontece e a cabeça diz-nos que temos de ir, de fazer. Ou então, num cenário pior, é a vida que nos mostra a dor dos outros, a morte dos outros, tudo se agiganta e temos de reagir.
Reagir não é ficar quieta. É engolir, descer os degraus dois a dois, subir mais devagar, tentar manter o mesmo tom de voz com todas as pessoas e não desistir.
Desistir não é permitido, é uma não-palavra.
A "traição" vê-se a outra luz quando a memória do corpo se ressente e a angústia se instala. Ter boa memória é algo impossível de controlar.
A maioria das pessoas não gosta que os outros a tenham ou, de preferência, se têm, pois que se calem.
Quanto mais me dói, menos calada consigo ficar. Uma merda.