A consciência dos homens
Ser-se íntimo de alguém implica partilha. No caso das mulheres, como escreve Inês Pedrosa no seu último livro, é preciso que haja uma relação. As mulheres gostam de se relacionar, assim o afirma, a determinada altura um dos seus personagens, na página 23. A voz de Afonso: “ as mulheres gostam que tudo se relacione. Como se não pudessem existir sem relações”.
Em dezoito anos de vida literária, Inês construiu um património de personagens admirável, sendo que uma boa parte são mulheres. Pessoalmente, o livro “Nas tuas mãos” é aquele que me comove mais, é um livro sobre três gerações, três mulheres diferentes. Talvez por essa opção, escrever sobre a vida das mulheres, a Inês tenha sido alvo constante do cliché relativo à literatura dita feminina. Ora, a literatura, a boa literatura, não tem género. E isso a Inês sabe como ninguém. “Os íntimos” é um livro sobre sexo, sobre os homens, mas não recorre às imagens habituais, mergulhando a fundo na realidade que a escritora observa. Sim, porque uma das melhores características da escrita da Inês é o facto de pertencer ao seu tempo, ou seja, como escreve David Lodge - um escritor, critico literário e ensaísta britânico - não há nada melhor para espelhar a consciência do tempo do que a literatura. Inês tornou-se esse grilo falante de épocas infantis e escreveu um livro cuja proximidade com o leitor é quase inevitável. Isto só é possível porque, ao contrário de muitos, a escritora não está fechada na sua cápsula protectora, maturando a sua genialidade, considerando-se especial. A Inês acredita que é na fragilidade e no mundo que nos encontramos e percebemos.
“Os íntimos” são, assim, um retrato no masculino, contemporâneo, de uma certa geração de homens, dos seus tiques e manias, daquilo que os distingue das mulheres. Nós, mulheres, falamos muito sobre o que acontece na nossa vida, damos pormenores e choramos. Analisamos a nossa auto-estima. Os homens? Na página 15, Inês escreve, na voz de Afonso: “Um homem não tem de pedir que, por favor, lhe poupem a auto-estima. Um homem ri-se da palavra auto-estima. Auto-estima nem sequer é uma palavra: é uma adereço, um postiço de salvação”.
Os homens são íntimos de outra forma, entendem a intimidade como companheirismo. O futebol pode ser catalisador dessa intimidade. À volta de um plasma, de umas cervejas e de uns petiscos, os homens sentem-se bem na solidão acompanhada. Podem até viver entre si traições, amores cruzados, ambições desmedidas, mas são amigos porque são do Benfica, do Porto, do Sporting, porque partilharam o mesmo liceu, a mesma faculdade, o mesmo meio.
Na página 24, Afonso explica: “Não é para nos ouvirmos que nos encontramos – apenas para estarmos juntos. Cada um de nós é uma trave mestra da casa que somos todos juntos”. E, um pouco mais à frente, conclui: “Não esperamos nada de especial de cada um de nós. Não há decepções nascidas de ilusões desproporcionadas. Não há ilusões. Nem sombra dessa maçada incomensurável que se chama a análise da relação”.
O que fazem estes homens uns com os outros? São íntimos, sabem coisas uns dos outros, mesmo as indizíveis, têm medo, inveja ou admiração. Ao mesmo tempo, são a bóia de salvação, uma espécie de confraria de normalidade em que apostam uma vez por mês. Sim, porque este livro é centrado num jantar que acontece uma vez por mês. O pretexto é a morte de uma filha, mas não vou, como é óbvio, revelar a história. O que importa aqui é que o livro se dê a conhecer, se torne apelativo e cada um de nós, leitores, possa fruir da escrita da Inês Pedrosa, aprendendo alguma coisa ou, simplesmente, elaborando questões de vida que, até aqui, não nos ocorreram.
A escrita da Inês assume neste livro uma crueza que só revela a sua maturidade. O livro é o resultado evidente de muitos anos de convivência com os homens. Não se pode viver com eles, não se pode viver sem eles, costuma-se dizer. Uma coisa é certa, os cinco homens deste livro são homens comuns. Têm os seus mistérios? Sim e não são imunes ao feminino, pelo contrário. Por uma razão ou por outra, da filha à mãe, da ex mulher à mulher cobiçada, todos eles – Afonso, Filipe, Augusto, Pedro e Guilherme – moldam a sua forma de estar e viver conjugando várias facetas da sua vida no feminino. Para os mais atentos, “Os íntimos” releva ainda uma surpresa: o regresso de uma personagem de um dos best sellers da Inês, uma personagem do livro que se chama “Fazes-me Falta”.
Não acredito que os livros sejam melhores ou piores. Porque gosto demasiado da escrita para entender dessa forma simplista a equação da qualidade. Há quem tenha vivido a história da mulher e do homem de “Fazes-me Falta” com enorme intensidade. É um livro que marcou a história da literatura portuguesa, não tenho qualquer dúvida. Não vou desvendar segredos de um livro ou do outro, deixo-vos essa tarefa. Contudo, arrisco-me a dizer que “Os Íntimos” serão, a médio-longo prazo, entendidos e analisados, quem sabe se academicamente, como uma forma de ruptura. Porque existe neste livro uma escrita mais audaz, mais próxima da realidade, de um ideia de medo e de mortalidade, uma escrita que não obedece a estruturas narrativas formais e seguidas há anos. Há, se quiserem, uma ousadia. Conhecendo a Inês há tanto tempo, sei que “ousadia” é uma palavra de que gosta. Ao mesmo tempo, como sucede com alguns personagens, a ousadia é vivida a meias com o receio de não conseguir.
Uma vez, há muito tempo, a Inês disse-me que quando perdemos o medo é quando deixamos de fazer coisas interessantes e diferentes. Um dos seus personagens diz o mesmo, neste livro, sobre o exercício da medicina. Uma coisa é certa: “Os íntimos” revela uma nova Inês Pedrosa e isso, por si só, é bom, porque não podemos viver no passado, nem a usufruir das luzes de outra festa. Cada livro da Inês é um passo gigante, uma lição e, como disse no início, um reflexo da consciência do tempo que vivemos. Logo, uma festa maior.
(texto de apresentação do livro "Os Íntimos" ontem no Casino da Figueira da Foz)