Quarta-feira, 24 de Fevereiro de 2016

Fictiongram, continuação da continuação

Quando a memória já não é a mesma; os actos falhados pesam; e a memória regressa; e o perdão do passado que não serve o futuro; e quando se é enterrada viva; e a desgraça pode ser maior; e a noite foi só deles; a ausência de Laura parte o silêncio; uma mentira é melhor; a família morre

 

Carmen não se queria encontrar com Jaime, não podia sequer imaginar o que seria esse estar frente a frente depois de tudo. Ainda lhe doía o

Nem na cama és boa

Ou teria sido de outra forma? O tempo mostrava-lhe que, apesar da dor, o coração tinha recuperado e a memória recusava-se a devolver exactidões. Jaime sugeriu o encontro. Ela respondeu

Não, Jaime, não faz sentido, depois de tudo não podemos ser amigos e, repara, é uma situação criada por ti.

Não me portei bem, eu sei.

Pois sabes, não és parvo. Compreendo que estejas em baixo, mas eu não sou um confessionário ambulante. Fala com o teu irmão.

Não posso falar com o Paulo.

Carmen esteve quase para gritar que não tinha nada a ver com ele, com o irmão, com a potencial causa de um desconforto que não se prendia, decerto, com ela. Podia deixá-la em paz? Por favor. Não gritou. Acatou e sentiu-se fraca. Marcaram um jantar.

Jaime desligou o telemóvel e mandou sms ao irmão dizendo

Vou jantar com a Carmen. Quem sabe?

Não percebeu, ou não quis perceber, que o gesto era como um outdoor luminoso a dizer

Não lhe tocas. Já não é minha, mas não lhe tocas.

Paulo, por seu turno, percebeu tudo e escreveu a Carmen, via Facebook

Já sei que vais jantar com o Jaime. Ele está chateado por causa da nossa mãe, não lhe ligues. Não lhe dês importância, Carmen, ele só te irá fazer mal.

Apagou a mensagem. Paulo sabia mais. Sabia melhor. Não era possível manipular a situação. Teria de ver Carmen e perceber. Antes, porém, era urgente entender o que fazia a mãe em Coimbra.

Laura rondou a casa. A mesma palmeira solitária, a laranjeira ao fundo e ainda uma buganvília rosa tímida, despida de graça. Por instantes, conseguiu sentir o odor da casa, um perfume único que a transportou para a infância. Sabia que tudo estaria na mesma. Os ruídos da madeira, o terceiro degrau das escadas para os quartos teria uma mancha preta incompreensível. Maria Luísa estaria ali e Carlos também. Não a olhariam com carinho, antes com perplexidade, Laura podia apostar, e um sentimento contraído de hostilidade que se materializaria em simpatia de circunstância, na melhor das hipóteses. Sentiu um arrepio de frio e ajeitou o casaco.

Não tinha qualquer hipótese de ser aprovada. Maria Luísa iria verificar cada centímetro quadrado do seu corpo, o rosto pesado, as rugas, os cabelos brancos a despontar selvagens, as mãos com unhas rentes e Laura seria de novo uma menina apanhada em falso. À memória delas a rir, a partilhar brincos e sapatos, imagens devolvidas no espelho de corpo inteiro, no conforto do quarto menineiro de Maria Luísa, tinha-se substituído a outra: Laura deitada, a chorar, o menino nos seus braços e Carlos a dizer

Perdoa-me, perdoa-me...

Maria Luísa não a perdoaria. E, como castigo, primeiro gesto de rebeldia que veio a aprimorar, Laura limpou o rosto e, com imensa dificuldade, sentou-se na cama e proferiu a sentença

Leva-o tu, Carlos. Dá-o a Maria Luísa, para que não pensem que passou estes meses todos em casa sem razão. Eu sei que fiquei aqui como quem está enterrada viva. E tudo porque tu não tens coragem para ser alguém. Nem é para ser um homem, Carlos, é coragem para ser uma coisa viva.

E ele não a olhou, ela com os braços estendidos, o menino adormecido, um cueiro de algodão branco, mínimo, mínimo.

Leva-o, Carlos, leva o bebé daqui que eu não o quero. Pega nele e na tua mulher e vão a Lisboa, quando voltarem podem dizer que Maria Luísa o teve. Ninguém acreditará, é evidente, mas os comentários acabarão.

Ele quis perguntar porquê. E para onde é que ela podia ir. Afinal, Laura não tinha como viver sem a ajuda deles. Ela riu-se, maldosa, já sem o filho nas mãos, a ver aquele homem, o pai da criança, pela primeira vez. Carlos era insuficiente. Maria Luísa equivalia ao máximo da crueldade, mas Carlos era pior, um súbdito dela, a viver no terror de a agitar. E era isso que ele dizia

Não a quero agitar

Como se Maria Luísa fosse um moinho de vento frágil, em precariedade permanente, a correr um qualquer perigo que mais ninguém via, mas que Carlos assumia como sendo real e só ele podia travar tudo.

Carlos não se conteve quando, no fogo de uma noite de verão, pegou na mão de Laura e fugiram para a garagem dos pais dele. O corpo dela era um território antecipado, Carlos tinha sonhado com tudo o que podiam experimentar se se experimentassem um ao outro. Um mês depois casou com Maria Luísa, Laura foi a madrinha e dama de honor em destaque, já que era a única. Martim nasceu nove meses depois. Laura nunca soube como se chamava o seu filho, entregou-o ao pai, naquela tarde em que nasceu, e deixou Coimbra. Tinha-lhe parecido que seria para sempre. Afinal não.

Paulo cirandou pela casa. Estava tudo com aquele ar de desleixo

​ a que a mãe se habituara. A rebeldia passara a uma depressão que a mantinha no letargia sem qualquer energia. Ele sabia que não servia apenas medicá-la, era preciso mais do que isso. Laura sempre se recusara a fazer terapia.

Tu não sabes nada do que eu passei, Paulo, não vou fazer terapia. Cheguei aqui. Estou aqui. A vida é isso.

No quarto encontrou vestígios do último homem com quem a mãe estivera. Não fazia um esforço para o recordar, porém teria de reconhecer que tudo piorara quando ele abandonara a casa, a relação. Laura explicara

Nunca deu. Arrastámos isto para nada.

O “isto” era o plural composto pelos dois.

A vida amorosa de Laura era, no mínimo, rica, assim o entendia Paulo que não queria mais pormenores e, ao mesmo tempo, parecia não se livrar deles. Havia alturas da vida da mãe que permaneciam na escuridão. Apesar de liberal, de extrovertida, Laura mantivera os seus segredos.

Paulo verificou o frigorífico, não deixou nada. Fechou a porta, um saco do hipermercado na mão esquerda com restos e o coração inquieto. Teria de informar Jaime que a mãe não estava, tinha partido numa viagem. A primeira hipótese, sempre a melhor, dizia-lhe a experiência, seria mentir. Assegurar que sempre tivera conhecimento da intenção de viajar e que a ajudara. A segunda era somente admitir que não tinha ideia onde a mãe estava.

Laura, com cinquenta e nove anos, não podia estar perdida na paisagem. Por outro lado, Coimbra não era tão grande assim. Paulo não entendia a escolha por aquela cidade. Que soubesse não havia ali nenhuma ligação. Mas podia estar errado, o que sabia afinal da mãe? Nunca os deixara com os avós, era como se não existissem. Laura costumava atirar-lhe com a frase

Não prestaram para mim, não prestam para vocês.

E, os três, apenas os três eram uma família, como se viessem do nada, nenhuma raiz fundadora, nenhuma origem.

publicado por Patrícia Reis às 15:03
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